Ricardo Ribeiro não desejava viver


PorLuís Osório
01 Julho, 2022 • 22:46
1. Cada um de nós é muita coisa diferente...
... muita memória, muitas perdas, muitas portas por abrir, muitos erros e arrependimentos.
Quando voltamos a ler um livro passados vinte anos, a história é sempre diferente, parece ter sido escrita por outra pessoa, parece uma outra coisa - claro que não é, nós é que mudámos e não demos conta.
Ricardo Ribeiro não desejava viver
2. Isto a propósito do extraordinário Ricardo Ribeiro.
Um homem que foi vários homens.
Que nasceu marcado para não ser, para não conseguir, para ficar pelo caminho.
No seu bairro de criança, um bairro operário de Lisboa, privou com o inferno, privou com ele e tornou-se íntimo de uma energia que o puxava para baixo, que lhe dizia coisas ao ouvido, um grilo falante que o acompanhou durante a sua primeira vida.
O pequeno Ricardo passou necessidades. Viu os pais separarem-se, ouviu berros e lágrimas, sentiu que não era desejado, que talvez estivesse a mais. Fez a primária, aprendeu a ler e a escrever, mas a tristeza era funda, uma tristeza que parecia um bicho a escavá-lo por dentro.
Houve um dia em que aquele menino desistiu.
Quis morrer, era a única solução que lhe pareceu óbvia.
Ricardo tinha quase 13 anos quando se tentou matar.
"Estava tão desesperançado" confessou há uns dias a Manuel Luís Goucha.
"Estava tão desesperançado" que resvalou num mar de comprimidos que o deixaram entre a vida e a morte.
3. Ricardo salvou-se, mas a vida continuou a ter muitas nuvens, demasiadas. Fez porcarias, foi internado num colégio interno e aos 16 anos deixou a escola para ir guardar ovelhas na Moita.
O bilhete de condenado continuava lá, mas Ricardo começou a dar-se à vida, começou a abrir os olhos às perguntas para as quais não tinha resposta, começou a querer saber mais.
Com recuos.
Com avanços.
Outra depressão, mais medicamentos, mais acompanhamento psiquiátrico.
E a música.
E as leituras.
E abertura de caminhos.
E alguém lhe apresentou a alegria, o amor.
E ele começou a cantar, a escrever letras, a procurar.
4. Esta é a história de um homem que provou que ninguém está condenado à partida.
A história de um dos maiores artistas portugueses.
Que se mudou para o Alentejo, para a vila de Cabrela, onde recuperou uma casa com as suas próprias mãos e a transformou num lugar que recebe jovens artistas, uma casa em que os ouve e os ajuda a serem maiores ou a encontrarem também o seu caminho.
Ricardo Ribeiro é um gigante.
E há uns meses foi pai de um rapaz, o Francisco.
5. Somos vários ao longo dos anos.
E o Ricardo aí está para o comprovar.
Aquele rapaz de 12 anos, perdido e sem futuro.
Aquele rapaz que aos 16 pastoreava ovelhas, tão perdido como antes.
Aquele rapaz que caiu depois dos vinte numa outra depressão grave e destrutiva.
Aquele rapaz que se transformou no cantor português mais poderoso, mais visceral, mais carregado de uma energia que o faz diferente de todos.
E quando canta o Alentejo.
Ah, quando canta o Alentejo, não fica pedra sobre pedra nos que o ouvimos.
6.
Não há condenações em vida, volto a dizer-te.
E se porventura sentes que não consegues iluminar a tua vida, se te sentes desesperançado ouve a voz do Ricardo e sopra uma mensagem para dentro do teu abismo: há caminho para cima, há um caminho para ti, há um caminho que podes agarrar e fazer teu.
Tal como o Ricardo.
Tal como tantos outros e outras que o conseguiram.
Recorde-se que, caso esteja a sofrer de algum problema psicológico, tenha pensamentos autodestrutivos ou sinta necessidade de desabafar, deverá recorrer a um psiquiatra, psicólogo ou clínico geral, podendo, ainda, contactar uma das seguintes entidades:
- Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) - 808 237 327 (número gratuito) e 210 027 159
- SOS Voz Amiga (entre as 16h e as 24h) - 213 544 545
- Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h) - 228 323 535
- Telefone da Esperança (entre as 20h e as 23h) - 222 030 707
- SOS Estudante (entre as 20h e a 1h) - 239 484 020