"Candidatura de Gouveia e Melo é uma ameaça a Montenegro"
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O politólogo João Pereira Coutinho diz que o texto que Henrique Gouveia e Melo escreveu para o Expresso sobre os poderes do Presidente da República tem uma veia de "discurso Miss Mundo" e não deixa claro o pensamento deste proto-candidato a Belém. Mas demonstra uma vontade de cortar com o estilo de Presidência de Marcelo Rebelo de Sousa e de não prestar vassalagem aos interesses partidários. Porém, o cronista da SÁBADO mostra-se reticente com a ideia de que Gouveia e Melo queira dissolver a Assembleia da República se o Governo não cumprir as promessas. E vê esta proto-candidatura como uma ameaça ao atual primeiro-ministro e uma luz ao fundo do túnel para André Ventura.
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JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA_EPA
O texto no Expresso, intitulado "Honrar a Democracia", vem, no entender do politólogo, sinalizar duas coisas. "Em primeiro lugar, que a candidatura presidencial vem a caminho e em segundo lugar é uma resposta àqueles que se lamentam por aí que não conhecem o pensamento do almirante Gouveia e Melo, como se os candidatos de que já temos conhecimento tivessem um grande pensamento em matéria presidencial ou mesmo em matéria política para o país", sublinha.
Gouveia e Melo começa afirmando estar, politicamente, "entre o socialismo e a social-democracia, defendendo a democracia liberal como regime político". Em qualquer parte do mundo isto queria dizer que o ex-chefe do Estado-Maior da Armada era um homem de esquerda, já que "a social democracia é uma evolução pela ruptura do marxismo", sublinha Pereira Coutinho. "Mas no contexto português quer dizer que está ali entre o centro direita e o centro esquerda", acrescenta o politólogo, recordando que Portugal é o único país onde o partido social-democrata se situa no centro-direita. "O que o almirante está a dizer é que se situa num espaço ideológico que pode apelar tanto para eleitores do PS como para eleitores do PSD", o que inclui a larga maioria do eleitorado português. "É apelar ao famoso centrão. No fundo, o que ele está a dizer é votem em mim, PS e PSD."
"Na conjuntura atual, um Presidente sem a independência necessária afunila a democracia. Por isso, a bem do sistema democrático, devemos querer um Presidente isento e independente de lealdades partidárias", escreve Gouveia e Melo no seu texto do Expresso. No entender do professor da Universidade Católica Portuguesa, o almirante mostra, com este posicionamento, entender o "espírito dos tempos" atuais. "Vemos por todo o Ocidente a emergência de fenómenos de grande desconfiança nos partidos tradicionais e Gouveia e Melo percebe isso e sabe que há uma erosão dos grandes partidos em Portugal que explica fenómenos como o Chega. E, nesse sentido, quando Gouveia e Melo, no seu texto, afirma que o Presidente da República deve estar livre de partidos, no fundo é exatamente isso que ele está a sinalizar", defende. "O almirante diz que não vem do mesmo vespeiro dos outros candidatos, que se situa acima dos partidos" e que não está amarrado aos mesmos. "Essa é a sua estratégia e o seu trunfo fundamental", defende.
Pereira Coutinho considera ainda que este texto vem levantar um pouco a ideia de que o almirante era de direita. "O preconceito de que ele seria de direita porque era militar é um pouco absurdo porque se a história de Portugal nos ensina alguma coisa é que os nossos militares tanto vieram da direita como da esquerda. Portanto, a ideia de que por ser militar a pessoa é necessariamente conservadora ou de direita é um preconceito que não faz grande sentido", argumenta.
Ficamos a conhecer o pensamento do almirante?
No que diz respeito ao conteúdo, este texto mostra um almirante muito menos bélico do que nas entrevistas anteriores. O discurso não tem referências que possam ser entrecruzadas com um discurso militar. "O almirante sabe que terá de moderar o seu discurso militar numa candidatura a Presidente da República. Agora convém que não modere ao ponto de ocultar a necessidade que Portugal e os seus outros parceiros europeus têm de pensarem a sua defesa e a sua segurança em temos que serão sombrios do ponto de vista geopolítico", considera Pereira Coutinho. "Aliás, eu acho mais preocupante que candidatos ou putativos candidatos ao cargo, como Marques Mendes ou António José Seguro, se mostrem muito desconfortáveis com questões de defesa e segurança no sentido de maior investimento em Defesa", acrescenta, destacando a importância de repensar a forma como se investe na Defesa e de como essa assunto deve estar no centro do debate.
Gouveia e Melo apresenta-se ainda como alguém que acredita no mercado livre, na defesa dos direitos e liberdades dos cidadãos, diz que quer uma justiça célere e o aumento da produtividade. Pereira Coutinho descreve essa parte do texto como um discurso de Miss Mundo. "É evidente que ele é a favor da democracia liberal, de uma economia de mercado livre, que respeita a iniciativa privada e seria impensável que dissesse o contrário", mas interpreta estas afirmações como uma tentativa de combater as ideias feitas que há sobre militares que passam para a política. "No fundo é a velha ideia de se achar que um militar não pode ser um democrata liberal, o que é um absurdo", reforça.
Já sobre o exercício da Presidência, Gouveia e Melo destacou que "um dos poderes informais mais importantes do Presidente é o poder da palavra. Quando o Presidente fala, não é um cidadão comum, é a República. Tem a obrigação de usar a palavra seguindo as regras da relevância, isenção, equilíbrio, contenção e gravitas". Pereira Coutinho vê aqui uma forma de o almirante afirmar que não vai ser como Marcelo Rebelo de Sousa. "Ele diz que não será como Marcelo Rebelo de Sousa. Diz: 'Eu falarei pouco'. De certa forma, o que ele está a dizer é que o Presidente atual fala em demasia e ao falar em demasia vulgariza o cargo", interpreta.
O politólogo acredita ainda que este texto tem o condão de dizer que Gouveia e Melo quer ser um fator de estabilidade, se for Presidente. Mas diz que essa tentativa de ser um elemento de estabilidade choca com a ideia de que pode acabar com um governo se esse governo não cumprir as suas promessas. João Pereira Coutinho refere-se à secção em que Gouveia e Melo refere que apenas se deve demitir o Governo "quando existir a forte convicção que o contrato entre governados e governantes foi significativamente comprometido" e se verificar "um desfasamento grave entre os objetivos prática do Governo e a vontade previamente sufragada pelo povo". "Se de cada vez que um governo não cumpre uma promessa isso fosse critério para dissolver a Assembleia, então o país andaria sempre em eleições. Porque, como é evidente, os governos muitas vezes não cumprem as promessas, por variadíssimas razões", ressalva o politólogo que diz que esta é mesmo "a parte mais bizarra do texto".
Incitado a fazer uma previsão sobre como correria uma Presidência de Gouveia e Melo e se há a possibilidade de ser criado um partido presidencial à semelhança do que Ramalho Eanes fez com o Partido Renovador Democrático (PRD), Pereira Coutinho diz que acima de tudo Gouveia e Melo pode representar uma ameaça para o atual primeiro-ministro. "O próximo Orçamento do Estado pode não vir a ser aprovado e, não sendo, o País vai entrar num período longo em que não é possível haver eleições pelos impedimentos constitucionais referentes à Presidência." Olhando para o panorama político atual, com dois partidos grandes mais-ou-menos taco-a-taco e com um terceiro partido um pouco mais abaixo, o Chega, Pereira Coutinho não exclui que o almirante "em nome da estabilidade e do superior interesse do partido" tente pressionar para um entendimento à direita que possa incluir o Chega.
E por que é que isso é uma ameaça a Montenegro? "É uma ameaça a Luís Montenegro porque, se ele confrontado com essa situação e se recusar a aceitar é provável que ele não continue à frente do PSD", começa por descrever o politólogo. "E é também uma esperança para André Ventura que tem um objetivo claro que é um dia chegar a um Governo. E com Gouveia e Melo tem uma possibilidade de, num entendimento à direita, fazer parte de uma solução de governo."
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